Moscas

Jaime Guimarães
3 min readSep 4, 2019

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Dermatobia Hominis é o nome científico da conhecida Mosca Varejeira. Ela tem uma vida curta, apenas sete dias. Utiliza feridas de seus hospedeiros para por ovos e assim perpetuar a espécie. É perigosa e danosa para o bolso dos homens, pois ataca muito o gado; apesar de não fazer distinção de nenhum bicho, seja bruto ou pensante. A varejeira não quer saber, ela só prolifera, apesar de tudo.

Dermatobia Hominis

Dia desses fomos até o sítio de uns amigos para passar uma noite longe da cidade, beber e conversar sobre tudo. Nos irmanamos à mesa e abrimos os trabalhos. Minutos depois demos por falta dos cachorros dali, carinhosamente chamados de Catita e Zé Botinha; mãe e filho. Zé Botinha tinha esse nome porque era todo preto mas com as patas brancas, que pareciam botas. O diminutivo é porque ele era um mescla de vira-lata com algum cachorro baixo, tipo salsicha. Catita eu não sei o porquê de seu nome.

Ficamos sabendo que há semanas Zé Botinha desaparecera, e há alguns dias, Catita também, logo após parir nove cachorrinhos, que foram todos levados para doação. A suspeita era de que alguém das redondezas os tivesse matado, pois eles eram danados e matavam galinhas e outros bichos dos sítios vizinhos. Tristes lamentamos, mas continuamos a beber. A vida segue, apesar de tudo. Seu Carlos, dono do sítio repetia que nunca mais queria criar cachorro. “A pessoa se apega demais”, ele disse um tanto pensativo.

Seu Carlos é um homem de pouco mais de 60 anos. Já viveu e trabalhou muito e hoje só quer saber de alegria, de reunir os amigos em sua roça, que tanto ama. Sua esposa, Dona Vera, ama viajar e faz Seu Carlos rodar milhares de quilômetros cortando o país de fora a fora, como se diz por aqui. Os dois vivem várias aventuras, mas é do sítio que seu Carlos gosta mesmo. Ele diz que enquanto tiver vida é onde ele deseja estar, na roça e rodeado de amigos e felicidade.

A noite se alongou e nós bebemos, comemos e celebramos aquele bom momento, mesmo que volta e meia surgisse algum comentário penoso sobre a falta que aqueles cachorros fariam ali. Para onde iriam os ossos que sobraram da farta mesa?

Na manhã seguinte estávamos deitados nas redes debaixo do alpendre. Fazia sol, mas o clima era bom, corria muito vento. Seu Carlos e Dona Vera já haviam ido embora. Foi quando uma amiga avistou um grande pássaro negro. “Olha que pássaro grande!”. Momentos depois outros pássaros negros voavam em círculos. Eram urubus. Foi quando nos dirigimos até onde eles estavam e encontramos o corpo de Catita, que estava inchado e rijo. O odor forte atraiu os urubus. Havia muitas moscas varejeiras ao redor do corpo. Nos perguntamos a quanto tempo Catita estava ali sem vida. Poucos dias, talvez.

Nos divertimos a noite toda a alguns metros do local de morte de Catita e nem percebemos que ela jazia perto de nós. Certamente não o tipo de velório que ela merecia. Mas não tínhamos como saber, era escuro. Decidimos cobrir o corpo de Catita ali mesmo, para que pelo menos seus restos mortais ficassem em casa, apesar de tudo. Zé Botinha não teve a mesma sorte. Seu paradeiro ainda é desconhecido.

Cavamos sob sol forte e fizemos seu túmulo. As moscas permaneciam ali, tentando sempre voltar ao cadáver, mas nós cobrimos tudo.

Pensei que tudo que aquelas moscas conheciam em seu curto período de sete dias de vida era o cadáver de Catita. Era seu lar, onde cresciam de larvas e ganhavam asas. O quanto interrompemos o ciclo? Eu me indaguei. Quantos anos em tempo de mosca roubamos? Elas, assim como deus, só deveriam descansar ao sétimo dia. Os Urubus sumiram em busca de outro carcaça. Nós também interrompemos o seu ciclo. Destruímos tudo.

Fiquei pensando nos ciclos. Em como ansiamos por completar os nossos de forma plena e tranquila, sem que sejam destruídos precocemente. Mas nem sempre é assim. Pensei em como, apesar de tudo; homens, cães, moscas e urubus compartilham algo em comum.

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